Direitos autorais são como toques de Midas: blindam tudo em que encostam. Não necessariamente em ouro, mas sim numa camada de proteção que, em médio e longo prazo, enferruja da mesma forma, podendo apresentar consequências imprevistas pelos criadores lá no começo – talvez por conta da proporção incalculada que um projeto pode ganhar.
Nos games, essa máxima tem um poder negativo: problemas com música podem fazer um título ser removido do catálogo de uma loja virtual, cerceando qualquer possibilidade de compra no futuro e, assim, impedir que novos jogadores conheçam determinada obra.
É como perder um prato inteiro de comida por conta de um único ingrediente em falta – todo o resto está ali, em harmonia, mas precisa sair de cena por conta de direitos autorais.
Essa sensibilidade infligiu Alan Wake em 2017, quando o game foi removido das lojas digitais em função de licenças musicais que começaram a expirar. E estamos falando de música para sequências de transição inovadoras, funcionando como componente fundamental de gameplay.
O escritor criado pela Remedy realizou uma série de experimentações com a música, principalmente nas sequências intersticiais entre os episódios. Essas transições transformaram a banda de rock finlandesa “Poets of the Fall’ em narradores musicais da história – ou, aos fãs de plantão, preferimos chamar de “Old Gods of Asgard”.
O salvo-conduto veio pelas mãos da Microsoft em 2018, quando a gigante renegociou as licenças do jogo e afastou a assombração dos direitos autorais. Tudo isso suscita uma onda de questões na cabeça dos jogadores: até quando esse novo licenciamento vale? Não há como negociar um prazo “eterno”? E os temores do problema regressar? Como funciona esse mundo dos direitos autorais?
Para ampliar o contexto em prol de tentar endereçar essas e outras perguntas, o Voxel teve a oportunidade de conversar com o próprio compositor de Alan Wake, Petri Alanko. Sim, licenciamento é um emaranhado de particularidades.
As obscuras entrelinhas das licenças
Licença musical pode afetar streaming, usabilidade e a experiência em si. Jogos como GTA, Forza, os rítmicos e Alan Wake, entre tantos outros, estão sujeitos a esse risco. Perguntado sobre o maior problema que uma companhia enfrenta ao lidar com um incidente dessa natureza, o artista foi enfático: “Licenciamento nunca deve ser feito de forma leviana ou apressada”.
“Como criador, artista, vocalista ou compositor, você coloca seu coração e seus sonhos na reta ao lançar músicas. Muito, muito raramente a problemática está no dinheiro, se é que alguma vez já esteve, mas sim no ponto de conexão de sua canção: as pessoas vão se lembrar da música como ela é ou como parte de outra coisa? É importante que exista uma série de questões ‘e se’. O diálogo entre os profissionais criativos é importante”, explicou, colocando a comunicação entre as partes como elemento crucial para a paz de espírito do licenciamento – e como a ausência desse diálogo pode culminar num mar de problemas.
“Pessoalmente recebi alguns e-mails [em 2017] sobre a trilha sonora de Alan Wake desaparecendo de vários serviços, embora eu ainda conseguisse jogar. Alguns funcionários da Remedy já haviam percebido isso e eu resgatei mensagens da intranet da empresa. (...) Os termos de licenciamento haviam expirado, e assim a música foi removida. Por sorte, a Microsoft foi extremamente prestativa (valeu, Boyd Post, te devo essa!) e tomou conta do problema com todo o poder deles. Nós da Remedy ficamos mais que tristes ao pensar que futuras gerações de jogadores talvez nunca experimentassem Alan Wake da maneira correta. Mas tudo mudou com a renegociação da música original e nem preciso dizer o quanto ficamos felizes com isso!”, relatou.
Relação cósmica entre música e gameplay
O Voxel, então, foi além. Contextualizamos o artista sobre um dos trechos mais marcantes do jogo, em que Alan enfrenta uma horda de inimigos com a canção “War” tocando ao fundo, em volume crescente, definindo um tom dramático à batalha e ao arco narrativo daquele ponto da aventura. Trilha sonora original poderia enfrentar os mesmos problemas de músicas já existentes fora do jogo? Em outras palavras: a música do próprio estúdio poderia enfrentar obstáculos também?
“Na minha opinião não há obstáculos relacionados a contratos ou acordos. Geralmente essas questões são esclarecidas logo no começo e muito bem planejadas, e no caso de Poets of the Fall/Old Gods of Asgard, a ideia era escrever a música ‘fora’ do grupo original. Queríamos ter uma ‘banda cult’ em Alan Wake tocando especificamente sons compostos para determinadas cenas. No entanto, isso se aplica apenas a materiais personalizados. Se surgir algum problema, digamos, envolvendo jogo X de empresa Y disputando uma canção do artista Z, e se os contratos de uso de material in-game não forem confeccionados com clareza suficiente, o pior pode acontecer”, disse.
“Mas a estrutura básica de um acordo já existe, e há muito, muito pouco espaço para erros: você está sendo pago pela utilização vitalícia de algo que fez dentro do jogo, apenas um pagamento, ponto. Os detalhes mudam, mas tudo geralmente vem determinado como ‘sob esse ou aquele título da IP, para sempre será possível etc’. Posso dizer que entendo a terminologia de licenciamento muito bem como criador, não me referindo aos termos legais, e devo acrescentar que, como os games foram aos poucos se tornando entidades multimídia, multiarte e multiplataforma, a essência de tudo é o SENTIMENTO: o que podemos oferecer a vocês, jogadores, para abrir novas portas? Como podemos lhes servir melhor? Enquanto nos concentramos nisso, aprendemos ao longo do trajeto”, contou.
A música de Alan Wake é tão intrínseca ao gameplay que, se não houvesse renegociação da licença, os jogadores perderiam, basicamente, um sentimento. Sobre a possibilidade de um Alan Wake existir sem isso, Petri foi igualmente enérgico na resposta: “Não”.
“O desaparecimento da trilha sonora de Alan Wake dos serviços de streaming basicamente ocorreu porque a então gravadora deixou de existir e, portanto, não havia ninguém para olhar os acordos feitos num momento anterior. Em resumo, o que tínhamos, no final das contas, era uma bola de neve de pequenas coisas que resolveram acontecer de uma vez só”, relatou o compositor.
“Como poderíamos substituir
[a música] ‘War’ desse trecho icônico? Poucas cenas de batalha são tão
legais quanto essa e, na época, me pareceu até outra festa de
aniversário, para ser sincero. Quem quer que tenha sido o responsável
pela ideia merece um abraço!”, endossou.
Há solução “eterna” para tempo de licença num jogo?
Sim e não, de acordo com o artista. Essa é uma questão que envolve, majoritariamente, o orçamento.
“Para ser franco, ‘eterno’ é um período muito, muito custoso. Com um certo toque emocional, algumas cenas grudam na cabeça das pessoas para sempre. Quanto mais jogadores estiverem entre os artistas e compositores, mais fáceis se tornam as negociações de licenciamento. Me parece até o alvorecer de um novo mundo: estamos nessa juntos, sério”, ponderou.
“O protecionismo de algumas gravadoras ou dos agentes é algo diferente, mas posso afirmar que a fonte de quaisquer problemas quase nunca tem relação com os artistas em si. Sendo justo aqui, quando estávamos cuidando dos acordos de Alan Wake, a duração de 7 anos [do licenciamento] era considerada ‘eterna’, e alguns colegas de outras empresas até acharam que estávamos desperdiçando dinheiro fazendo isso. Ninguém acreditou que o jogo ganharia esse status cult tão grande e essa longevidade – e parece que não para por aí com a remasterização agora. Nem preciso dizer que estamos extremamente felizes com isso. Sabíamos que uma gema estava em nossas mãos, mas, mesmo assim, era impossível prever até onde chegaríamos”, esclareceu o compositor, que ressaltou os personagens únicos e a atmosfera do jogo como pontos fora da curva.
Regiões diferentes e particularidades
Sobre regionalidade – isto é, termos de licenciamento que valem para uma região e são diferentes em outras –, Petri explica que “cada região tem seus próprios regulamentos, acordos e contratos”, mas que “ajuda ter um parceiro à altura como publicador”, tal qual a Remedy teve com a Microsoft à época.
“Mesmo com o entrave de 2017, a situação se desenrolou muito bem. Me permita usar a metáfora ‘voar’: céu limpo para voar. Hoje, temos consoles que renderizam tudo na nuvem, filmamos em 4K de nossos celulares, temos Dolby Atmos...para um aficionado em tecnologia, isso é o paraíso, e para o departamento jurídico também: eles precisam preparar [o produto] para o futuro e para o fato de algo digital provavelmente nunca desaparecer”, comparou.
“É engraçado, aliás: após checar meus e-mails naquela época, parece que a Finlândia foi, de fato, o último país a perder a trilha sonora dos serviços de streaming, enquanto a Suécia foi um dos primeiros – então nem sempre é sobre fuso horário ou continentes. Como as gravadoras dos artistas e os escritórios de licenciamento geralmente trabalham de forma global – afinal de contas, o mundo dos games é o planeta inteiro hoje –, restrições regionais raramente se aplicam. Falando como artista, pode haver alguma particularidade relacionada à porcentagem de royalty, dependendo de qual país está assinando os contratos de licenciamento, então, fica a dica aos artistas: confiram sua porcentagem antes de assinar”, alertou o autor.
Mundo digital e mídias físicas em xeque: cenários
A essa altura do campeonato, tratar de direitos autorais envolve um certo sensor de desconforto que todos nós temos em nosso inconsciente coletivo: um futuro dominado pelo formato digital em que os jogadores dependem, basicamente, da existência do serviço em questão para poder baixar determinado jogo – cenário de amargo tempero, diga-se. Se o título é varrido da loja por uma questão de licenciamento, ficamos órfãos. Perguntamos: como lidar com esse risco?
“Apesar de todos os serviços e nuvens de backup e até cópias locais, sim, de fato o risco existe. (...) Se algo sumir, é sempre relacionado a acordos. Acredito que nada desapareceria com base apenas na premissa de que ‘ah, ninguém mais joga, então tira isso daí’ ou algo parecido. Creio que hoje estamos mais confortáveis e seguros com isso”, opinou.
Outro assunto de ampla discussão na indústria é o ritmo dos jogos: inúmeros títulos saindo, pouco dinheiro e, sobretudo, falta tempo. Ter uma banda como “narrador” do jogo é algo que pode preencher essa lacuna. O que Alan Wake seria sem isso? Tudo igual – gameplay, gráficos, personagens, história –, mas sem a participação crucial da música?
“Provavelmente um pouco forçado, para ser sincero”, inicia Petri. “As músicas oferecem uma maneira genuína de permitir que algo bom circunde você e te prepare para outra situação, prenunciando o que está por vir. Um amálgama de emoções. Às vezes, dar muitas opções pode se virar contra você: se estiver confiante com seu produto, esteja convicto de ditar o ritmo também. Você leva sua franquia e seu conceito a sério? Não deixe as pessoas passarem por ela apenas pressionando ‘B’ ou ‘O’. Trata-se de game design e refinamento de conceito”, diagnosticou o criador.
“Ritmo é um integrante da experiência como um todo. (...) Como compositor e músico, digo que o silêncio pode falar algo tão vigorosamente quanto uma nota tocada. É meio que definir um groove: não é sobre como as notas começam, mas sim como também terminam e tocam umas com as outras”, descreve.
Original e remasterização: áudio atualizado
A engenharia de som de Alan Wake Remastered também ganhou atualização, de acordo com Petri. “A música in-game e a trilha sonora agora estão em resolução cheia. No jogo original, alguns arquivos estavam codificados e, em determinadas situações, apresentavam artefatos”, contou.
Futuro: a assombração do licenciamento pode voltar a Alan Wake?
Perguntado sobre isso, o compositor demonstrou segurança e garantiu que o jogo está em boas mãos. “Os detalhes de licenciamento não são de minha responsabilidade, para dizer a verdade, mas depois de uma investigação ‘sherlockhomesiana’ que fiz ao perguntar para as pessoas sobre isso, fui informado de que ‘estão muito eficientes a partir de agora’. Então, perguntei: ‘Quão eficientes?’, ao que me responderam ‘muito, muito, na verdade’. (...) Eu acredito que não há espaço para erro similar não”, concluiu.
Licenciamento de músicas e direitos autorais são tópicos que permeiam os bastidores da indústria e envolvem cuidado, alinhamento jurídico e acordos sólidos entre todas as partes envolvidas. Hoje, essa consciência é mais cultural do que antes – e, depois do susto, Alan Wake parece ter dissipado esse temor.
Fonte:
Vovo GaTu
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