No Telegram, tudo parece ser possível e os crimes não ficam de fora como o da devassa da vida privada e até o da pornografia de menores.
Quando a foto foi publicada tinha 18 anos feitos há pouco mais de um mês”, começa por desabafar Margarida Fernandes, estudante do curso profissional de Coordenação e Produção de Moda. Estava de férias, hospedada num hotel, e decidiu fotografar-se em frente de um espelho com um dos braços em redor do peito.Afinal, estava a preparar-se para um dia de praia e tinha as cuecas do biquíni vestidas. Achando a imagem “inofensiva”, partilhou-a nas Stories do Instagram. Mas houve quem encarasse aquele conteúdo de outra forma e o divulgasse no grupo Pussylga, que conta com 9128 membros. O nome do grupo resulta da aglomeração das palavras pocilga, em português, e pussy, em Inglês, usado no calão como referência à vagina.
A partir do dia 20 de outubro, a vida da jovem que sonha tornar-se
artista e prosseguir os estudos na área da fotografia noutro país mudou.
“No grupo, dizem que vendo conteúdo, mas isso é mentira. Não tive
conhecimento do OnlyFans até isto acontecer”, clarifica a alegada
vítima, acrescentando que “publicaram a foto como se fosse íntima, mas
não era”. Margarida tem sido ameaçada com a publicação de mais
fotografias – todavia, assegura que isso “não é possível”, uma vez que
só publica fotos no Instagram “que não têm nada de mal”.
Não é a única mulher a sofrer as consequências da atuação do grupo
que, na descrição, promete relacionar-se “com discórdia e concordância,
mas acima de tudo boa interação entre inscritos” e que apela à proteção
de informações pessoais e proíbe a pedofilia assim como a adesão de
membros com idade inferior a 18 anos. “Há menores no grupo. Uma delas
tinha 15 anos quando a foto foi tirada”, garante Margarida, deixando
claro que a adolescente pretendia enviar aquela prova de confiança ao
namorado mas, enganando-se, publicou-a no Instagram. “Apesar de a ter
eliminado logo, acho que foi um amigo do namorado que teve tempo de a
ver e partilhou-a”, lembra com a compaixão vincada na voz. E evoca ainda
o caso da divulgação de fotografias de quatro menores “enrolados em
toalhas” em que “não havia nada sexual” – na sua opinião, os membros
“estavam a hiper sexualizar os meninos”.
David Silva Ramalho, advogado e associado principal na equipa de
contencioso criminal, risco e compliance da Morais Leitão, defende que
“a disponibilização de material pornográfico que envolva menores, quando
dolosa, é sempre punida”. Desde setembro do ano corrente, “o mero ato
de assistir a vídeos desta natureza é crime” – “a punição depende, em
todo o caso, do conhecimento de que se encontram representados menores
nos vídeos ou, no mínimo, da representação dessa possibilidade e da sua
aceitação”.
Margarida revela que se tem deitado, todos os dias, às cinco da manhã
para estar “a par das situações”, até porque o seu nome é
constantemente mencionado no Pussylga. Na passada terça-feira, viveu uma
das experiências mais assustadoras da sua vida: ao pensar que a sua
carreira pode estar condenada ao fracasso “por causa disto”, teve um
ataque de ansiedade. “É muita pressão”, resume.
Desde que a sua vida privada está sujeita à devassa, tem estado em
isolamento profilático. No entanto já saiu para ir a uma consulta médica
e não notou “olhares estranhos”. No mundo virtual, o panorama é
distinto: recebe “muitas mensagens de apoio” mas também “outras muito
agressivas e sexuais”. Tomou a decisão de tentar não estar tão
atualizada para proteger o seu bem-estar. “Isto faz-me muito mal”,
realça. E acrescenta que as imagens de outra rapariga estão a ser
partilhadas como se fossem dela. “Dizem que ela é gorda, por exemplo,
porque querem que os membros acreditem que sou eu”, explicou.
O que é o Telegram? Criada “com foco em velocidade e
segurança”, como diz o site oficial, o Telegram é uma aplicação de
mensagens que pode ser utilizada “em todos os dispositivos ao mesmo
tempo” porque as mensagens serão sincronizadas nos tele móveis, tablets e
computadores. Nesta plataforma, é possível enviar mensagens, fotos,
vídeos e “arquivos de qualquer tipo, assim como criar grupos de até
200.000 pessoas ou canais para transmitir audiências ilimitadas”. Quem a
instale pode usufruir de funcionalidades como a “compatibilidade com
chamadas de voz com criptografia de ponta a ponta”.
Desde que o i teve acesso ao grupo, foram trocadas mensagens de cariz
difamatório do gênero feminino – “Ganham seguidores à pala dos grupos e
ainda reclamam. P*tas mal agradecidas” –, bem como outras de tentativa
de controlo por parte de um dos administradores – “Grupo não vai ser a
bandalheira que era, tem de ser mais controlado” –, de obtenção de
impunidade – “Deviam era f*der a cabeça a quem elas mandam os vídeos.
Porque é que não fazem queixa deles na polícia?” –, desculpabilização
dos ilícitos supostamente cometidos – “A culpa é de quem se deixa filmar
e de quem filma” – e até relativas ao cyberbullying de que Margarida é
alvo – “Arranjar as fotos delas e vídeos” e “Fotos e vídeos da Guida? Há
assim tanta coisa?”.
Na ótica de Guida, como é apelidada tanto pelos amigos como pelos
membros do grupo, “o problema é exatamente o anonimato”. Quer fazer
justiça, mas teme não ser capaz porque “eles escondem-se atrás de nomes e
fotos falsos. Afirmam que a lei não os vai perseguir porque não fazem
nada ilegal”. O anonimato vai para lá da utilização de fotografias e
nomes fictícios. No Pussylga – com alterações de nome constantes, como
La Pussylga de Papel, numa referência à série espanhola La Casa de Papel
–, são criadas contas com recurso à imagem e ao nome de personalidades
como o líder do Chega André Ventura, o primeiro-ministro António Costa, o
treinador Jorge Jesus ou o já falecido guerrilheiro angolano e líder da
UNITA Jonas Savimbi.
O advogado Silva Ramalho assume que “plataformas como o Telegram são
conhecidas por manterem níveis de colaboração mínimos com as
autoridades” e, quando o fazem, como aconteceu em novembro de 2019,
“tende a ser para casos de terrorismo, e quase sempre numa base
voluntária”. Portanto, “a informação tipicamente necessária à
identificação dos autores – neste caso o IP e o número de telemóvel –
muito dificilmente será obtida”. O profissional nota ainda que “a
obtenção dessa informação muitas vezes passa por técnicas de engenharia
social, através de ações encobertas nesses chats, ou, em ordenamentos
jurídicos que o permitam, com recurso a tentativas de hacking dos
utilizadores por parte das autoridades”.
O que acontece na Internet não fica só na Internet Este
é o mote da nova campanha de sensibilização da Associação Portuguesa de
Apoio à Vítima (APAV). A APAV espera alertar a população portuguesa
para sete crimes que são cometidos via internet como o grooming – quando
alguém desenvolve uma relação de confiança com uma criança ou um
adolescente com vista a manipular, explorar e abusar dele de alguma
forma –, sextortion – quando alguém recorre ao poder que tem para coagir
uma vítima e obter favores sexuais – e o cyberbullying. É importante
mencionar que as 11.676 vítimas assinaladas em 2019 foram alvo de 11.836
agressores, dos quais 66% eram do sexo masculino e tinham idades
compreendidas entre os 35 e os 54 anos. Através da consulta do Relatório
Anual de 2019 desta associação, é possível verificar que foram
registadas 84 ocorrências de cibercrime. Mas, naquilo que concerne os
crimes que lhe são afins, os números são distintos. Por exemplo, a
devassa da vida privada associada à partilha de gravações e fotografias
ilícitas contou com 93 denúncias, a difamação e injúrias com 315 e a
pornografia de menores com 699.
Ricardo Estrela, gestor operacional da Linha Internet Segura,
coordenada pela APAV, sabe que existem mais grupos que seguem o modus
operandi do Pussylga. “Com o início da pandemia, o consumo de
pornografia aumentou”, começa por revelar ao i. A linha verificou
“vários fenômenos que acabam naquilo que é o objetivo deste grupo”. Isto é, sites como o OnlyFans, o Patreon e outros tiveram muita procura durante a época de confinamento “não só para quem quisesse fazer
dinheiro expondo fotografias ou vídeos íntimos a troco de dinheiro, mas
também para aqueles que o consumiam”.
“Aliado a isto, na vertente dos conteúdos ilegais da linha, recebemos
denúncias de plataformas de partilha de conteúdos ilegais e de mensagens
instantâneas”, adianta. Numa primeira fase, eram feitos leaks de
conteúdos do OnlyFans, “ou seja, alguém que tinha uma conta começou a
fazer download dos conteúdos e a divulgá-los e, depois, degenerou
noutras coisas”.
Estrela refere-se à descoberta de que estes grupos não tinham em sua
posse apenas conteúdo que pode eventualmente violar direitos de autor,
mas também screenshots, por exemplo, de publicações de perfis do
Instagram. “Acabámos por verificar que algum conteúdo podia ser captado
no contexto de uma relação íntima, mas também percebemos que as pessoas
só entram para estes grupos se enviarem coisas novas”, revela. Cada vez
mais tem conhecimento de imagens que ultrapassam a consensualidade, “são
fotos tiradas sem o conhecimento das próprias vítimas, quando estão a
tomar banho ou a dormir e estão nuas, para que os homens consigam entrar
nestes grupos”.
“A Internet evolui e as coisas mudam”, reconhece
Margarida, para quem as funcionalidades das redes sociais deixam muito a
desejar, tal como a sua falta de responsabilização perante a partilha
não consensual de conteúdos eróticos. “O Telegram protege muito este
tipo de grupos, por as mensagens estarem encriptadas” e “o Instagram
devia mudar as regras. Por exemplo, devíamos poder ver quem faz
screenshots das Stories”.
Quem não se surpreende com esta realidade é Silva Ramalho. “A criação
de plataformas onde se divulguem conteúdos sexuais entre adultos não é,
por si só, criminalmente punida. Questão diversa é a de saber se o
autor da partilha pode ser punido”. Neste âmbito, o advogado
especializado em cibercrime e prova digital salienta que urge
“distinguir entre o autor primário da partilha e a pessoa que se limita a
reencaminhar esses conteúdos”, pois o autor primário da partilha, ou
seja, a pessoa que, sem consentimento, divulga um vídeo íntimo de teor
sexual envolvendo outrem comete um crime de devassa da vida privada e
este é punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240
dias. Por outro lado, “se a divulgação for, ao invés, precedida ou
seguida de uma interpelação para a prática de um certo facto ou um
pagamento, poderá estar em causa um crime de ameaça ou de extorsão”.
#NãoPartilhes Enquanto não iniciam uma batalha
judicial, Margarida e outras 27 vítimas deste e de outros grupos, como
aqueles que se podem encontrar no Discord ou no Reddit, dão voz às suas
vivências através do movimento #NãoPartilhes. Por meio da presença no
Instagram – onde contabilizam 19.800 seguidores – e no Twitter, as
fundadoras almejam “apoiar vítimas da partilha de conteúdos não
autorizados e sensibilizar o resto”. Mas têm um aliado secreto nesta
missão: “Há alguém, não faço a menor ideia, que está a divulgar as
identidades verdadeiras de membros do grupo. Nem eu nem outra menina do
nosso movimento estamos envolvidas nesse leak”, garante. Há um princípio
que não quebra: “Não o fizemos porque não concordamos com isso. Os
membros estão constantemente a atacar-nos, dizem que estamos a expô-los,
mas não somos nós”.
“No que respeita à lei penal, parece-me que em vários pontos o
legislador não acompanhou a evolução do cibercrime”, considera Silva
Ramalho, referindo-se à Lei do Cibercrime de 2009 e a crimes como o da
“usurpação de identidade, que não encontra um enquadramento penal claro,
e que muitas vezes é utilizada para divulgação de pornografia de
vingança”. Ainda assim, para o advogado, “não existe uma desproteção
absoluta da vítima, no sentido em que há norma que pune alguns
comportamentos”. O problema existe “em matéria processual, uma vez que o
legislador deveria ampliar o leque de meios de obtenção de prova à
disposição. De pouco serve punir este ou aquele comportamento se os
meios processuais à disposição da investigação não são eficazes”.
Margarida Fernandes e o seu grupo de vítimas querem mudar este
cenário. “Queremos consciencializar as pessoas de que este crime é muito
mais comum do que se possa pensar. Na maior parte dos casos são
conteúdos retirados de contas de OnlyFans de meninas porque, a partir do
momento em que o conteúdo é vendido, os direitos de autor são
reservados e os membros infringem-nos. Depois, ex-namorados e amigos
recebem uma nude e sentem-se no direito de expor a intimidade das
pessoas porque não concordaram com alguma atitude”, diz a lesada. De
acordo com Silva Ramalho, quando estamos perante namorados ou parceiros
sexuais, “a conduta será sempre punida se não tiver havido consentimento
para a divulgação” e, a seu lado, “a divulgação não autorizada de
conteúdos adquiridos a vendedoras de cariz erótico online, além de
constituir um ilícito civil, poderá, em certos casos, gerar
responsabilidade criminal pela prática do crime de usurpação”.
A verdade é que, desde que deu o primeiro passo na exposição do grupo
Pussylga, Margarida ganhou mais conhecimento acerca da devassa da vida
privada e, naquilo que diz respeito a este crime, recorda um caso
específico: “Há uma menina que foi violada por três rapazes e o vídeo
foi partilhado”. Mas nas contas oficiais do #NãoPartilhes são
rececionadas “centenas de desabafos” e a estudante tenta ajudar as
vítimas consoante as suas possibilidades. “Mas eu não estou em posição
de ajudar ninguém porque tenho problemas psicológicos. Estou no grupo,
vejo diretamente aquilo que dizem sobre mim”, declara.
O #NãoPartilhes tem como objetivo primordial obter a atenção dos
media. Isto porque, na maior parte das vezes, “nada é descoberto e nada é
feito. É o ‘deixa passar’”. Margarida e as amigas querem chamar a
atenção da opinião pública para conseguirem “apoio, descobrir quem está
por detrás disto e mandar os grupos abaixo”. E já contam com o
engajamento de celebridades como José Castelo Branco.
“Esse tipo de pessoas, que estão nos grupos, a partilhar conteúdos,
acha que a mulher existe para servir os homens. Somos mais do que um
órgao sexual: somos pessoas com um cérebro, com sentimentos e com vida”,
remata Margarida. Para ela, os membros do Pussylga e de outros grupos
“acham que têm poder sobre as mulheres por estas serem sexualmente
ativas”, algo que contraria a sua própria atuação na medida em que “é
isso que fazem e, aí, já não há problema. Para eles, a mulher é uma
coisa que lhes dá prazer”. Mas o movimento espera chegar mais longe e
abranger um público-alvo mais vasto, como a comunidade LGBT, “que sofre
muito também porque os transexuais são expostos e usados para tudo e
mais alguma coisa”. Por agora, focam-se nas mulheres “porque são mais
afetadas”.
Silva Ramalho destaca que “as vítimas de crimes podem e devem sempre
apresentar queixa, mesmo se desconhecerem a identidade do agente” mas,
neste último caso, “a investigação criminal serve precisamente para
apurar os agentes do crime e a sua responsabilidade. Em certo tipo de
crimes, designadamente quando esteja em causa pornografia de menores, é
possível requerer às autoridades o bloqueio dos websites”.
Desde que Margarida se “infiltrou” no grupo, a quantidade de membros subiu de 6500 para mais de 9000, evolução que considera “chocante”. Apesar do bullying a que é sujeita diariamente, tenta manter o bom senso. “Eles não têm noção do quão grave é aquilo que fazem”, conclui.
Fonte:
Vovo GaTu
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