BGS 2019: 'Eu teria feito diferente', confessa o criador de E.T., o 'pior jogo de todos os tempos'

Lembra dos cartuchos enterrados no deserto?

A história dos videogames pode ser dividida em duas fases: antes e depois do chamado "crash de 1983", que quase extinguiu a indústria de jogos -- e deu início a uma totalmente nova poucos anos depois. E em meio a tudo isso, o nome de Howard Scott Warshaw surge como um dos protagonistas.

Howard Scott Warshaw, durante entrevista na BGS 2019. (Foto: Daniel Sodré)
 Foi Warshaw, na época com 25 anos, o responsável solitário pela criação do game E.T. The Extra-Terrestrial, para o Atari 2600. Baseado no filme de Steven Spielberg e lançado em dezembro de 1982, o game ficou marcado por sucessivas polêmicas. Relatos da época falam sobre consumidores irritados com a alta dificuldade do jogo, o que gerou milhares de cartuchos devolvidos às lojas. Erros estratégicos subsequentes fizeram com que a Atari abrisse falência, em um processo que abalou a confiança da indústria dos videogames domésticos no Ocidente e abriu espaço a novos players vindos do Japão, como Nintendo e Sega. Para Warshaw, sobrou o triste fardo de ter produzido o "pior game de todos os tempos", um rótulo que hoje ele não renega e de certa forma até celebra. Em sua primeira visita à Brasil Game Show, o ex-designer (hoje psicoterapeuta) relembrou sua trajetória única com os videogames, revelou as sensações da descoberta do "cemitério de cartuchos de Atari" em um deserto no Novo México e ponderou sobre os erros cometidos no passado. "Se eu tivesse mais tempo, eu teria feito E.T. muito diferente", diz.
Você é conhecido pelo game do E.T., mas o primeiro título que criou para o Atari 2600 foi Yars' Revenge, em 1982. Antes de entrar na Atari, você era um engenheiro. Como alguém que nunca havia criado games de repente começa a fazer isso? Bem, essa é uma pergunta interessante. Como alguém entra nesse ramo? Na verdade eu não tinha como objetivo de vida ser um criador de jogos. Eu fui para a Atari porque os trabalhos com microprocessadores que eles faziam eram parecidos com as coisas que eu realizei na faculdade, e eu tinha vontade de fazer isso de novo. E também quis entrar lá porque ouvi dizer que era uma atmosfera muito louca, da qual eu queria fazer parte.
Mas eu amava jogos, e estava muito empolgado em trabalhar com isso. Quando eu tinha uns cinco, seis anos de idade, costumava formar uma pilha com meus brinquedos para tentar criar algo novo, só que nunca conseguia. Então, quando cheguei à Atari, tive a chance de realmente criar um jogo, e eu não fazia ideia do que isso significava. Eu só sabia programar, mas tinha noção de que eu era um cara muito criativo e meio esquisito. Pensei que, se eu juntasse tudo isso, tinha certeza de que podia criar algo divertido.
Diz a lenda que Yars' Revenge, apesar de ser um game de tiro especial todo complexo, tinha um apelo especial com mulheres adultas. Isso foi intencional? Meu objetivo com o Yars' Revenge foi criar um jogo que eu acharia divertido de jogar. Eu pensei: "Se eu gostar, outras pessoas vão gostar também". Quando a Atari começou a testá-lo com consumidores, o único grupo em que a nota foi alta foi o de mulheres adultas. Isso foi ótimo, porque eu amo a ideia de atrair jogadores adultos. Mas o marketing da empresa focou a publicidade do game em meninos de 10 anos de idade. Eu não sei por que eles fizeram isso.
Fui lá e reclamei com eles: "Vocês me pedem para criar jogos para mulheres adultas, e aqui está um jogo para mulheres adultas. Por que não estão mirando nesse público?" E eles disseram: "Bem, é que mulheres não gostam de jogos espaciais." Eu disse: "Mas seus testes mostram isso!". Ou seja, se você não acredita nos seus próprios testes, tem alguma coisa errada. E esse é apenas um exemplo de como as coisas eram absurdas na Atari. Era uma empresa totalmente sem sentido. Mas também era isso que o tornava um tão lugar incrível para se trabalhar.
E o segundo jogo de tua carreira foi Raiders of The Lost Ark [Caçadores da Arca Perdida], talvez o primeiro game baseados em um filme já criado. Eu cheguei a alugá-lo quando tinha sete anos, mas mal consegui jogar, de tão difícil -- era preciso usar os dois joysticks ao mesmo tempo! Dizem que E.T. é um game complexo, mas Raiders parecia muito mais. De fato, o Raiders era muito mais complexo. Sabe, existe uma regra fundamental criada por Nolan Bushnell [fundador da Atari], que diz que os jogos "devem ser fáceis de aprender e difíceis de dominar". Essa é uma ótima regra para games de fliperamas, em que usamos fichas. E eu quebrei essa regra constantemente. Mas eu não acho que jogos para consoles devam ser difíceis de aprender, porque uma vez que você compra um jogo, você não vai precisar gastar fichas para jogá-lo. Quem tem o game em casa pode dedicar tempo para aprendê-lo. Eu sentia que se esperássemos um pouco mais do consumidor em termos de aprendizado, seria possível oferecer uma experiência de jogo mais ampla. Foi esse o caminho que eu quis seguir. Mas realmente, meus jogos eram mais complexos do que a maioria.
Bom, vamos falar sobre o “elefante na sala”, ou melhor, o extraterrestre... Eu não sou enjoado para falar sobre E.T., não se preocupe.
Pois então, E.T. the Extra-Terrestrial, do Atari 2600, sustenta o ingrato rótulo de “pior game de todos os tempos”. É uma bagagem pesada para se carregar por tanto tempo, mas parece que você encontrou um caminho para superar, certo? Sim, eu encontrei. Bom, senso de humor é algo que sempre me ajudou muito na vida e continua sido muito importante para mim. E sobre como lidei com o rótulo de “pior game de todos os tempos”... Bom, antes de qualquer coisa, eu realmente não acredito que seja “o pior” -- existem jogos muito piores do que E.T.. Eu consigo comparar E.T. a qualquer outro jogo desenvolvido em apenas cinco semanas, que foi justamente o prazo que eu tive para criá-lo.
Mas, na verdade, eu até gosto quando as pessoas o chamam de “pior jogo de todos os tempos”, e te digo o porquê. Porque eu também criei Yars' Revenge, que é considerado por muitos como um dos melhores jogos de todos os tempos. Então se E.T. é o pior, eu sou o game designer com o maior amplitude da história. E tenho muito orgulho disso.
E você se lembra a loucura que foi esse período em que você trabalhou em E.T.? Primeiro, você recebeu uma ligação do CEO da Atari, daí teve uma reunião de surpresa com Steven Spielberg e ele pediu para você mudar a ideia inicial que teve para o game... Tudo isso em apenas cinco semanas. Não, eles não pediram pra eu mudar a ideia. A reunião com o Steven Spielberg foi para apresentar a ele o design. Era uma tarde de terça-feira e eu estava finalizando o trabalho em Raiders of the Lost Ark. Estava literalmente dando os últimos retoques antes de mandar o game para a aprovação. Daí recebi um telefonema do CEO, que disse: “Ei, queremos que você faça o game do E.T. e o prazo é cinco semanas. Você consegue?” E eu disse: “Com certeza. Eu consigo fazer”. Eu não tinha nenhuma dúvida.
 
Você tinha apenas 25 anos na época. Exatamente. Faltavam três dias para o meu 25º aniversário. Então este seria o meu presente para mim mesmo: teria de me matar de trabalhar para criar um jogo. E meu chefe disse: “Ok, ótimo. Esteja no aeroporto na quinta-feira de manhã, que um avião fretado vai levá-lo até o Steven Spielberg, para você apresentar o design do jogo”. Então, eu tinha apenas 36 horas para criar uma ideia de game -- o que nem era uma má ideia, já que eu teria de finalizar o projeto em cinco semanas, então nem poderia demorar muito para projetá-lo [risos]. Então, projetei um jogo que achei que pudesse realizar em cinco semanas, porque era tudo o que eu teria. Mas E.T. é um game considerado difícil não apenas para os jogadores, mas também do ponto de vista do design. Não é uma ideia simples como a de um Pac-Man, por exemplo. São muitas coisas para fazer, locais para ir e voltar, itens para encontrar… Isso não foi algo muito complexo para ser realizado sozinho, em um cronograma de cinco semanas? Bom, não foi, porque afinal eu consegui terminá-lo, certo? Quer dizer, pensando agora, há dois problemas básicos em E.T.. O primeiro é que eu tive de entregar uma versão jogável, que é aquele momento do desenvolvimento em que se pode experimentar a jogabilidade, mas sem nenhum polimento. É depois disso que o desenvolvimento geralmente começa. Eu sabia que meu design básico precisava estar pronto, portanto havia muita pressão, porque não teria uma fase para fazer mais ajustes.
Cometi um dos pecados fundamentais do design de games: é tudo bem frustrar os jogadores, mas não se deve desorientá-los O outro problema é que acabei cometendo um dos pecados fundamentais do design de games: tudo bem frustrar os jogadores, na verdade isso é até necessário, mas você não deve desorientá-los. Havia muitas partes em E.T. em que os jogadores simplesmente encostavam em algo e iam parar em outro lugar, sem saber o que tinha acontecido. Esse não foi o caminho certo a seguir, só que eu realmente não percebi dessa maneira, e não tive muito tempo de melhorar isso. A verdade é que sim, eu sempre faço os jogos mais complicados do que precisariam ser, talvez porque isso me dê a ilusão de [oferecer] mais jogabilidade.
E você se arrepende disso? Quero dizer, se você tivesse cinco meses, e não cinco semanas para terminar o jogo, teria feito algo diferente? Ah, com certeza. Quero dizer, se eu tivesse mais tempo, tipo oito semanas, eu teria feito o game muito diferente. Espera, quero dizer, eu teria polido melhor algumas coisas. Pensei muito nisso ao longo dos anos. O que eu faria para melhorar E.T.? A primeira coisa seria adicionar uma sequência de animação quando o personagem cai em um poço, para as pessoas entenderem o que está acontecendo. Outra coisa seria facilitar a saída de um poço, para que você não fique preso e volte a cair em um loop eterno. Na verdade, eu havia feito isso de propósito, porque pensei que já que não havia muita jogabilidade no game, então aprender a evitar os buracos seria parte da jogabilidade [risos]. Mas a maioria das pessoas via isso como um pé no saco. Não foi uma escolha necessariamente esperta da minha parte.

Outra coisa que eu teria feito seria colocar instruções escritas. Eu poderia ter encontrado uma maneira de simplificar em poucas palavras o que o jogador deveria fazer a seguir -- tipo, encontrar as peças do telefone, telefonar para a nave… Isso nunca havia sido feito antes e teria sido interessante, ter instruções verbais no jogo. Essas são algumas das coisas que eu faria para aparar algumas das arestas, e o resultado teria sido um pouco melhor.




Depois do lançamento de E.T., muitas coisas aconteceram: o “crash” da indústria de videogames em 1983, a lenda urbana de que os cartuchos foram enterrados em um deserto no Novo México, a descoberta de que isso aconteceu mesmo... E você esteve lá quando descobriram o "cemitério de games da Atari" [mostrado no documentário Atari: Game Over -- assista abaixo]. Como foi a sensação de estar "de volta", após todos esses anos? Certo, se você assistiu ao documentário, sabe que eu fico muito emocionado quando eles encontram os cartuchos. Muitas pessoas pensam: “Oh, ele está triste porque encontraram os jogos enterrados”... Mas não foi nada disso. Veja, eu criei esse jogo há muito tempo, com apenas 8 kilobytes de código de computador. E, de repente, lá estou eu no meio de uma tempestade de areia, ao lado de centenas de pessoas, e estão todos lá para ver essa coisa que eu criei, para ver se ainda está lá.
Então, eles acabaram encontrando os cartuchos e todo mundo ficou feliz. E ainda hoje eu fico emocionado quando penso nisso, porque percebi que essa coisinha que criei há três décadas ainda está empolgando e gerando entretenimento. Uma das razões pelas quais mudei de carreira -- eu sou psicoterapeuta atualmente --, é porque isso faz diferença na vida das pessoas. É algo muito significativo para mim. E naquele momento no deserto, eu senti que estava novamente fazendo a diferença na vida das pessoas.

Olhando para trás, quão orgulhoso você se sente? Afinal, a história da sua vida de certa forma se mistura à história dos videogames. Para mim, é uma honra incrível fazer parte da história dos videogames. Quando cheguei à Atari para fazer meu primeiro jogo, Yars’ Revenge, meu objetivo era criar algo inovador. Eu queria me estabelecer e ser respeitado como um designer de jogos. E ao longo de muitos anos, eu sinto que consegui isso.


Mas outra coisa significativa é que quando eu era adolescente, passava muito tempo entediado. Eu era muito infeliz, era difícil seguir em frente. E percebi que, com os jogos que eu fiz, consegui aliviar o tédio de muitos adolescentes parecidos comigo. Esses games tocaram muitas pessoas de maneiras positivas. Até hoje, tem gente que me aborda e diz que eu "roubei" centenas de horas de suas infâncias. Eu me sinto bem ouvindo isso, porque entendo o que elas querem dizer: que eu criei algo que realmente as divertiu e fez diferença para elas em algum momento de suas vidas. Sempre vou me sentir extremamente orgulhoso de ter feito isso.
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