Os antigos costumes do mundo vêm se desconstruindo em longos e dolorosos passos. O racismo passa a ser a cada vez menos tolerado, piadas sobre os hábitos antigos dados às mulheres já não têm mais graça e o bullying online vem sendo combatido por diversas redes sociais.
Porém, o mundo, principalmente na internet, agora está em busca da perfeição.Há quem faça comentários desnecessários na internet
propositalmente, seja para chamar a atenção ou por querer manifestar
seus pensamentos, e também há quem seja contra a ideia de desconstrução
social e tem dentro de si ideais enjaulados que parecem nunca ter acesso
à modernização. Em ambos os casos, a internet se tornou uma grande
justiceira e uma nova forma de justiça social surgiu: a cultura do
cancelamento.
Hoje, em redes sociais como o Twitter, vemos diversos famosos ou influenciadores digitais serem "cancelados", ou seja, sendo excluídos da sociedade para determinada pessoa ou grupo, deixando de existir na vida delas e não permitindo que elas sigam suas vidas sem a devida punição.
Cancelar uma pessoa virou uma prática usada por muitos nas redes sociais nos últimos anos, e "cultura do cancelamento" foi eleito como o termo do ano em 2019 pelo Dicionário Macquarie, que todos os anos seleciona as palavras e expressões que mais caracterizam o comportamento de um ser humano.
O que é ser “cancelado” nas redes sociais?
Essa atitude de cancelar alguém diz respeito ao não apoio aos atores, músicos, políticos, influenciadores ou qualquer marca famosa, que geralmente tem uma postura considerada ofensiva, preconceituosa ou condenável.
De acordo com dicionário de Oxford Languages, “cancelar” significa “tornar (algo) nulo, sem efeito, sem valor”. Quando uma pessoa diz que uma celebridade foi cancelada, é isso que ela está tentando expressar.
Mas como funciona isso na prática? Hoje, em redes sociais como o Twitter, vemos diversos famosos ou influenciadores digitais serem "cancelados", ou seja, sendo excluídos da sociedade para determinada pessoa ou grupo, deixando de existir na vida delas e não permitindo que elas sigam suas vidas sem a devida punição. Algumas vezes é temporário, outras vezes a pessoa cancelada precisa mudar, pelo menos exteriormente, para ser aceita novamente.
Uma pessoa ser cancelada significa que ela fez ou disse algo errado, que não é tolerado no mundo de hoje, em que muitas pessoas passaram por essa desconstrução social. Algumas pessoas, no entanto, possuem vivências diferentes e não conseguiam enxergar seus erros antes de terem sido rechaçadas na internet, sendo então essa punição uma maneira de educar. Esta forma de cancelamento pode gerar debates sobre racismo, preconceitos com determinadas classes sociais, xenofobia, homofobia, entre outras intolerâncias. Mas o ato de cancelar também pode acontecer com coisas banais, como falar mal de uma cantora pop muito famosa ou dizer que não gosta de algo muito popular.
Existem casos e casos, e a grande parte deles acontece por conflitos de opiniões e pensamentos. Pode haver um "certo ou errado", ou não: longe disso. No ano passado, o cancelamento ocorreu com a influenciadora digital Gabriela Pugliesi que, de fato, teve uma atitude irresponsável por fazer uma festa e receber pessoas em sua casa, mesmo após ter sido infectada pelo novo coronavírus (e curada) e o mundo estar em isolamento social devido a uma grave pandemia.
Essa, no entanto, não foi a única vez em que Pugliesi foi cancelada, já que a influencer andou se envolvendo em outros casos polêmicos anteriormente, mas nada tão grave. Sua festa no momento errado resultou em inúmeras críticas nas redes sociais, inclusive de colegas famosos, e no fim do contrato de parcerias com marcas, que decidiram não ter mais suas imagens vinculadas a Pugliesi.
Outro caso que aconteceu em 2020 foi de uma jovem estrangeira que mora aqui no Brasil, que fez um vídeo zombando de algumas tradições, como comer arroz e feijão todos os dias, ou ainda escovar os dentes após as refeições. Esses comentários inofensivos se tornaram uma dor de cabeça para a jovem, que foi xingada com palavras baixas e ameaças. Em muitos casos parecidos, as pessoas acabam recebendo ameaças de morte, entre outras coisas prejudiciais à saúde mental.
Recentemente, o tema voltou à tona com a 21ª edição do reality show Big Brother Brasil, o mais famoso do país, quando os famosos convidados para participar do programa chegaram na casa com medo de serem cancelados. O medo, no entanto, parece ter sido deixado de lado rapidamente com alguns participantes praticando o ato do cancelamento uns com os outros, provocando discussões nas redes sociais. Devido às indignações dos espectadores, a produção precisou intervir de forma velada com uma brincadeira em que eles precisavam dizer quem tinha o perfil de cancelador dentro da casa.
As pessoas precisam, de fato, entender que diversos comportamentos não são mais aceitos na sociedade. O movimento Me Too, por exemplo, levou à mídia inúmeros casos de abuso sexual e estupro dentro de Hollywood, revelando as verdadeiras faces de grandes artistas, que antes eram intocáveis. Mas para entender o motivo de estar acontecendo tantos cancelamentos, inclusive os mais banalizados, é preciso não só levar em questão a punição por questões sociais, mas a liberdade que plataformas digitais nos trazem, facilitando as manifestações de ideais sobre o que merece ser debatido.
De onde vem essa ideia?
Basicamente, começou em 2017 com o movimento #MeToo (#EuTambém, em português) nas redes sociais, contra os abusos sexuais sofridos, principalmente, pelas vítimas do produtor Harvey Weinstein, acusado por dezenas de mulheres de abuso sexual e estupro.
A partir desse momento, começaram a surgir outros tipos de cancelamentos com celebridades, como Taylor Swift e Bill Gates. Até que em 2020 essa cultura tem ganhado cada vez mais força, fazendo com que qualquer ato dos famosos ou anônimos seja motivo para uma convulsão social.
O que é a cultura do cancelamento na sociedade?
Para entender melhor esse movimento que vem acontecendo com frequência na internet, conversamos com Diogo Soares, bacharel em ciências sociais pela USP e gerente de projetos na área digital e redes sociais há mais de 10 anos. Para Diogo, o termo "cultura do cancelamento" é bastante vago, visto que pode ser aplicado de formas diferentes em localidades e culturas distintas, mesmo que as redes sociais tragam uma aproximação entre as pessoas.
"O que é passível de uma punição em uma sociedade não é na outra", conta. Isso, conforme políticas públicas que definem o que é crime ou não, que depende da criação de uma lei, a necessidade de ser votada para ser aprovada, muitas vezes alterando a constituição. Fora disso, o profissional afirma que existe uma série de mobilizações que anseiam por coisas diferentes, buscam por leis diferentes e proteções que estão dentro de um espaço público, que estão abertas e em discussão.
"A cultura do cancelamento se difere dessas outras manifestações políticas porque ela se dá em um ambiente privado, na conversa com uma rede social que é privada e que, apesar de ter um caráter público no sentido de que as pessoas estão em um espaço público, o cancelamento das pessoas como um banimento se dá no sentido de uma conta, um serviço, de uma funcionalidade — muito mais no ambiente privado de quem está se mobilizando", conta.
Portanto, Diogo diz que as pessoas, dentro desse espaço e como indivíduos, são as que definem o que é certo e o que é errado, sem que uma lei ou instituição esteja organizando isso. "Eu te cancelo e eu tenho o poder de fazer isso e eu vou chamar outras pessoas para fazerem a mesma coisa. Então, o que era passível de ter uma discussão pública acaba construindo outras formas privadas de uma cultura que pode dar muito errado, muito rápido", completa o bacharel, dizendo ainda que isso gera outras culturas mais severas, como a do apedrejamento e do linchamento, de que existe um poder nas mãos que será usado livremente.
Todos os passos dessa forma mais agressiva de cultura, para o entrevistado, vão contra uma estruturação de nossa sociedade que preza pela educação das pessoas, pelas suas mudanças e pelas formas de construção mais sensíveis e menos autoritárias. "É um mundo muito mais complexo que vem sendo nivelado por baixo, em uma espécie de movimentação que não passa por questões de valores, mas sim perseguições e outros tipos de sentimento que são muito individualistas", completa.
A tendência não é só dos mais jovens
Cultura do cancelamento é um tema que já chegou a ser debatido até mesmo pelo ex-presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, "O mundo está uma bagunça, existem ambiguidades", disse. "Pessoas que realmente fazem coisas boas têm falhas. Pessoas com quem você está lutando podem amar seus filhos e compartilhar algumas coisas com você", apontou Obama em entrevista realizada no ano passado, se referindo aos mais jovens.
Os adolescentes dominam a internet e não há como negar. Consequentemente, eles são os que mais estão envolvidos na cultura do cancelamento, fazendo críticas constantes sobre o que eles julgam como certo ou errado, seja mostrando o rosto ou atrás de perfis falsos. Porém, para Diogo, essa tendência não pertence somente a eles.
"O que estamos vendo é uma coisa muito mais propagada, que pode ser que tenha mais foco nos jovens, mas acontece em níveis menores e com menos repercussão entre os mais velhos em meio a um ambiente político-partidário, ambientes de setores e tudo mais. Existe um certo tipo de mobilização social que age de maneira privada, que acontece de uma maneira que não se mobiliza socialmente no espaço público, e acha essas trincheiras de uma maneira precária, mas com muita força. Não visa uma reconstrução, mas sim uma chamada para a paralisação, no caso o cancelamento", explica Diogo.
O profissional conta que esse descontentamento acontece porque a pessoa que está cancelando pensa que não pode mudar o cancelado, e em vez disso consegue o excluir de sua vida — e excluir a própria vida do cancelado —, fazendo com que ele perca seus patrocinadores, não vá a determinados eventos, entre outras coisas.
Afinal, a cultura do cancelamento é boa ou ruim? Por que ela existe?
A existência dessa cultura na sociedade — de forma geral e deixando de lado o fato de que cada país, região ou continente possui sua cultura — é uma regulação ainda pouco construída, segundo o bacharel em sociologia, e que possui muito poder concentrado. Ele conta que, por enquanto, o debate é se essa organização privada está dando conta de se sustentar.
"Me parece que o sistema legal e institucional, das respostas que essas grandes empresas dão, é insuficiente. Deveria haver um controle mais público e mais transparente sobre o que é um crime e quem está sendo punido, e isso deveria passar por especialistas e universidades para organizar melhor o motivo pelo qual algumas mobilizações sociais sobre o que é bom ou ruim acontecem", conta Diogo. O profissional aponta que, como resultado disso, é possível ver censura, perseguição, pessoas sendo caladas por opiniões em defesa de uma causa.
Diogo ainda dá um exemplo de um caso no qual uma música que falava sobre estupro recebeu vários pedidos de retirada das plataformas digitais, mas sem perceber que apresentar um dossiê para uma empresa privada, como o Facebook, é muito diferente de apresentar para uma grande estrutura, como o poder judiciário brasileiro. Caso isso acontecesse, segundo o especialista, haveria uma ampliação de todos os casos e discussões que mudariam o direito das pessoas, de liberdade criativa e de falar sobre coisas delicadas.
Para Diogo, é preciso também diferenciar sobre o que são lutas a favor de causas importantes, que valem a pena e fazem as pessoas mudarem seus comportamentos, do que é um abuso de censura e perseguição. "Isso precisa ser rapidamente debatido na sociedade, quais são os limites de cada intervenção. Os efeitos podem ser uma melhoria no sistema social aberto, fortalecimento de boas condutas, educação, formas de comportamento mais inclusivos, mas também pode acontecer movimentos de desentendimentos, segregação, censura, entre outras coisas", diz.
Conscientização e educação
Diogo diz que o ambiente em que acontece esse linchamento virtual — como Twitter, Facebook e Instagram —, que leva ao cancelamento, não possui ainda regras claras sobre o que é possível fazer por lá ou não. No entanto, isso pode ser uma oportunidade de constituir novas mobilizações, entendendo limites, formas de até melhorar as redes sociais e de criar fóruns públicos, além de permitir a atuação de educadores, políticos, pessoas do sistema judiciário, sendo mais possível criar um debate geral sobre condutas puníveis e educativas e como lidar com punições recorrentes, por exemplo.
"Ainda estamos engatinhando nisso. Eu vejo que o mesmo já aconteceu em ambientes grandes, como rádio e televisão, foi um momento inicial muito grande com problemas de abusos e impactos muito diferentes, com a sociedade se estabilizando em torno delas", relata Diogo. "É duro viver isso dessa maneira, mas é somente com mobilizações para haver a melhoria da proteção das pessoas, melhor enquadramento sobre as responsabilidades das empresas perante o público, até para a formação de comitês públicos, entendimentos mais amplos e, o mais importante, inclusivos", completa.
Ainda há muito a ser feito em relação a esta nova cultura do cancelamento, criando regras de forma coletiva. O bacharel diz que é exatamente isso que essa nova tendência cria: a sensação de que não existe uma regra para todo mundo, e que quem falar mais alto sai ganhando, dificultando a convivência social. De certa forma, a cultura do cancelamento, por estar em um ambiente público, traz a oportunidade de pessoas entenderem as questões graves relacionadas ao racismo, entre outros preconceitos, nunca antes debatidas no offline.
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